sexta-feira, 14 de setembro de 2012

Tem que ser assim:

 
 
Eu isolo os cabelos; ela ajeita as mechas negras; eu sou verde, ela azul; eu tenho o nariz de um dobrão espanhol, ela alegra as frutas; eu tenho os olhos renascentistas, ela um olhar impressionista; eu ando nos cantos dos caminhos, ela solta os caminhos sem perceber; eu me arrisco na arrebentação; ela espera a visita do mar; eu sou da meia-noite, ela é do meio-dia; minhas mãos são menores do que as dela, suas mãos alcançam a chuva; eu deito no lado esquerdo, ela amplia o direito; eu durmo de tevê acesa, ela sonha com o rádio ligado; eu esqueço moedas e passagens nos bolsos, ela recolhe o resumo da roupa na máquina; eu uso o telefone como orelha da porta, ela é a chamada a cobrar; quando distraído, eu faço poesia atenta, quando atenta, ela faz poesia distraída; eu tenho pés chatos e piso em falso, ela enxerga duplo e aprecia em dobro; eu danço fora da música, ela dança com a música de dentro; eu não sei fazer churrasco, ela faz de conta que não precisa; eu faço as contas, ela enrola o terço na cama para dar sorte; eu tomo café forte, ela mede a fumaça com a colher; eu chamo seu pai para consertar o chuveiro, ela chama minha mãe para me confundir; eu sou redundância, ela é o eufemismo, eu não uso aspas, ela usa chapéu na praia; eu leio estirado como uma chama, ela lê com as pernas dobradas; eu compro o fútil, ela compra o necessário; eu me perco em lugares abertos, ela se perde em lugares fechados; eu falo sem parar, ela ouve sem dormir; eu prefiro estacionar nas esquinas, ela me centra; eu compro jornal, ela é quem lê; eu escapo dos deveres, ela paga guardador de carro; eu me visto sem olhar, ela corrige o que não vi; ela não fica doente, eu adoeço quando estou nervoso; ela pensa em tudo, eu penso o que não sobra; eu extravio nomes, ela extravia rostos; eu não guardo telefones, ela memoriza a lista; eu não canto, ela me legenda o som; eu erro na pronúncia, ela é vento simultâneo; depois do prazer, fico com insônia, depois do prazer, ela quer dormir; eu tenho um porão de lembranças, ela tem um sótão; eu entro nas recordações pelos fundos, ela entra pela frente; eu me alumbro com a mentira, ela se deslumbra com a verdade; eu não me repito, ela imita sotaques; eu faço amigos rápido, ela exige convivência; eu compro as verduras que não prestam, ela cansou de me ensinar; eu não sei contar piadas, ela não gosta de piada; eu imagino, ela desabafa; eu fico calmo na tristeza, ela explode de raiva; eu alimento pressentimentos, ela confia em fatos; ela pede desculpas, eu continuo acusando; eu peço desculpas, ela já esqueceu; eu sinto ciúmes de velhos amores, ela sente ciúmes de novos amores; eu vejo a dor como uma trégua, ela observa a dor como uma lacuna; eu me interesso pelo objeto quando o perco, ela se interessa quando o reencontra; eu sou obcecado, ela é cautelosa; eu sou perfeccionista, ela é comovida; eu improviso, ela planeja; eu fujo do aniversário, ela ensaia o seu com antecedência; eu puxo sua cadeira, ela me seduz de lado; eu sou uma cidade de baixo, ela é a cidade vista de cima; eu me vingo, ela perdoa; eu sou passional, ela pacifica; eu me hospedo quando ela viaja, ela reside em minhas viagens; eu acredito em Deus, Deus acredita nela; eu rezo ao sair de casa, ela reza ao chegar; eu escalo árvores, ela rega relâmpagos; nenhuma noite é como as outras, as outras noites são dias inventados; nossa risada se bate no escuro."

(Fabrício Carpinejar)

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