sábado, 23 de outubro de 2010

Você já parou pra pensar o que faria se você pudesse ser você sempre?




Se eu fosse eu...

Se eu fosse eu, reagiria. Diria exatamente o que

eu penso e sinto quando alguém me agride sem perceber.

Deixaria minhas lágrimas rolarem livremente, não regularia

o tom de voz, nem pensaria duas vezes antes de bronquear,

mesmo correndo o risco de cometer uma injustiça, mesmo

que mexicanizasse a cena.

Reclamaria em vez de perdoar e esquecer, em vez de deixar

o tempo passar a fim de que a amizade resista, em vez de sofrer

quieta no meu canto.

Se eu fosse eu, não providenciaria almoço nem jantar, comeria

quando tivesse fome, dormiria quando tivesse sono, e isso seria lá

pelas nove da noite, quando cai minha chave geral.

Acordaria então às cinco, com toda a energia do mundo, para

recepcionar o sol com um sorriso mais iluminado que o dele,

e caminharia a cidade inteira, até perder o rumo de casa,

até o rumo de dentro.

Seu eu fosse eu, riria abertamente do que acho mais graça:

pessoas prepotentes, que pensam sber mais do que os outros,

e encorajaria os que pensam que sabem pouco, e sabem tanto.

Eu faço isso às vezes, mas não faço sempre, então nem sempre

sou eu.

Se eu fosse eu, trocaria todos os meus compromissos profissionais

por cinema e livro, livro e cinema. Mas quem os pagaria por mim?

Pensando bem, se eu fosse eu, seria como eu sou: Trabalharia,

reservando um tempo menor para cinema e livro, livro e cinema

mais pagando do meu bolso.

Se eu fosse eu, não evitaria dizer palavrões, não iria em missa

de sétimo dia, não fingiria sentir certas emoções que não sinto,

nem fingiria não sentir certas raivas que disfarço, certos soluços

que engulo.

Se eu fosse eu, precisaria ser sozinha.

Se eu fosse eu, agiria como gata no cio, diria muito mais sim.

Se eu fosse eu, falaria muito, muito menos.

E menos mal que sou eu na maior parte do dia e da noite, que

sou eu mesma quando escrevo e choro, quando rio e sonho,

quando ofendo e peço perdão.

Sou eu mesma quando acerto e erro, e faço isso no espaço

de poucas horas, mal consigo me acompanhar.

E ainda bem que nem sempre sou eu.

Se eu fosse indecentemente eu, aquele eu que

refuta a Bíblia e a primeira comunhão, aquele eu que não

organiza sua trajetória e se deixa levar pela intuição, aquele

eu que prescinde de qualquer um, de qualque sim e não,

enlouqueceria, eu.

(parte da crônica de Martha Medeiros)

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