sábado, 30 de outubro de 2010

Em silêncio no quarto você rasga devagar o seu pulso com as unhas para que eu possa beber



Você vai me abandonar e eu nada posso fazer para impedir.

Você é meu único laço, cordão umbilical, ponte entre o aqui de dentro e o lá de fora.

Te vejo perdendo-se todos os dias entre essas coisas vivas onde não estou.

Tenho medo de, dia após dia, cada vez mais não estar no que você vê.

E tanto tempo terá passado, depois, que tudo se tornará cotidiano e a minha ausência não terá nenhuma importância.

Serei apenas memória, alívio, enquanto agora sou uma planta carnívora exigindo a cada dia uma gota de sangue seu para manter-se viva.

Você rasga devagar o seu pulso com as unhas para que eu possa beber.

Mas um dia será demasiado esforço, excessiva dor, e você esquecerá como se esquece um compromisso sem muita importância.

Uma fruta mordida apodrecendo em silêncio no quarto.”
Caio Fernando Abreu

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